Perder um irmão, terrível. Perder um irmão gêmeo, perder uma parte de si. Halla perde sua irmã gêmea, Sigridur, aos 11 anos.
Nos fiordes da Islândia é que se passa o romance de Valter Hugo Mãe: A Desumanização.
A personagem Halla assiste sua irmã Sigridur morrer. Ou melhor: ser plantada “para nascer árvore”, como assim contaram para ela.
Todos os sentimentos que viveu com essa perda são cheios de analogias ricas: “O mar era um diamante líquido.”
Outras vezes são até difíceis de absorver devido à profundidade: “Os livros. Eram os livros. Diziam-me coisas bonitas e eu sentia que a beleza passava a ser um direito.”
Mãe é maestro. Sua escrita é uma arte. Ritmo, beleza, encantamento. Uma sinfonia! É história que consome a mente e as emoções.
A voz é o tempo todo de Halla. Sua mente de garota ainda ingênua começa a trama, mas não a encerra. Há um amadurecimento em sua fala até o fim do livro. A menina que se embaraça em sentimentos diversos sobre família, Deus, ternura, ódio e desejo transmite um amor belíssimo pela irmã, a quem apresenta com igual beleza, tornando-a quase sagrada:
“Estávamos furiosamente habituadas a cair e a esfolar os joelhos e as mãos quando fugimos do Einar. Comparávamos as feridas. Queríamos ter as feridas iguais. Quando tínhamos as feridas iguais até ficávamos felizes. (…) Era fundamental que fôssemos cada vez mais gêmeas.”
Einar é o menino feio a quem a irmã morta pedia para Halla nunca se apaixonar. O problema era a feiura. Ele aparece muito nas lembranças da personagem até que assume um lugar especial em sua vida, o que muda um pouco a ligação entre as irmãs. Halla começa a amadurecer, notar transformações em seu corpo, e pensa o tempo todo em como seria a aparência de Sigridur. “Voltaríamos a ser gêmeas mais tarde.”
Esse tempo que passa deixa em Halla o desejo de proteger as melhores lembranças. E não só as lembranças da irmã morta, as do pai também, a quem ama, cujas poesias tocam a garota profundamente.
São passagens belíssimas que Valter Hugo Mãe constrói: “Queria proteger contra o esquecimento. A maior vulnerabilidade do humano, a contingência de não lembrar e de não ser lembrado.”
O que A Desumanização traz ainda de belo, pelas bordas, é o amor da personagem, assim como de seu pai, pelas palavras, pelos livros. É fácil arriscar que se trata também do amor maior do escritor português. Em vários trechos do romance este amor fica evidente. Um deles entre os mais lindos trata da beleza, dos livros e de sua capacidade de salvar.
“Senti-me muito feia por andar ainda atrás da beleza. Era tão diferente de fugir. O meu pai desentristeceu-me. Prometeu que leríamos um livro. Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia. Mas também eram generosos. Oferecia-nos o que não nos acontecia. Se a minha mãe se deitasse cedo, leríamos como quem partia dali para fora. Para longe. Estás a ouvir, mana. Punha a cabeça de encontro ao livro como se para ler fosse necessário mergulhar. Servia de ilusão.”
Valter Hugo Mãe é português, nascido em Saurimo, cidade angolana antes chamada Henrique Carvalho.
Escritor premiado, o livro que o lançou ao mundo – que venceu o Prémio Literário José Saramago – foi O Remorso de Baltazar Serapião. Além de escritor, Mãe também é editor, artista plástico, apresentador de televisão e cantor.
A Desumanização é dedicado ao renomado compositor islandês Hilmar Örn Hilmarsson, quem Valter diz ter “combatido todas as suas tristezas redimindo tudo a partir da beleza.” Essa beleza que é notória em seu texto.
O livro também faz referência à sua própria infância, quando imaginava o irmão falecido Casimiro à sua própria imagem. Valter pensava que o coração do irmão debaixo da terra era como um caroço. São, então, do próprio coração de Valter Hugo Mãe, parte dos sentimentos de Halla.